Por Denilson Silva
A célebre declaração e confissão de Roque Santeiro, o ícone de um Brasil interiorano que respira através de artimanhas enquanto é mastigado pelo desenvolvimento, me serve para nos levar para outro momento histórico que nem sempre é retratado nas peças teatrais e telas brasileiras de forma tão espirituosa como os personagens da obra citada, um momento histórico negro, indígena e mestiço, que também se apropriou da ideia e da prática da fuga para poder sobreviver, existir, surgir e emergir.
O conceito de fuga, expresso no caribe e nas américas principalmente na marronagem e no quilombismo precisa ser entendido, como uma estratégia não só de libertação e resistência imediata do sujeito negro escravizado, mas como também recriação e reconstrução de sua identidade individual/coletiva como humano, através da conquista de novos espaços geográficos, sociais e culturais, que foram muito importantes para fundar historicamente a experiência amefricana, já que através destas experiências de fuga, ocupação de espaços e organização social, o um tornou-se muitos, e os muitos tornaram-se muitos novos uns.
Para escurecermos este ponto, é interessante recordar o que Dénètem Bona afirma em seu potente ensaio “Arte da Fuga”, ao discutir Fanon e sua interpretação sobre o sonho do colonizado: “Fugir não é ser posto para correr; o sonho é matriz de resistências criadoras, pois abre no cinza do cotidiano o arco-íris do possível. Só tendo sentido na própria carne a limitação dos movimentos, o acorrentamento, o cativeiro, as privações e múltiplas humilhações é que se pode experimentar uma inextinguível sede de liberdade: o fôlego rouco do neg mawon!” 1
O nosso fôlego está na fuga, na artimanha, na furtividade que nos torna livres, em cada passo rumo ao novo que nos permita ter fôlego. A fuga negra, indígena, mestiça e amefricana é uma declaração oposta à de George Floyd quando sufocado e assassinado pela colonialidade branca, violenta, vigilante e masculina encarnada na polícia estadunidense, a nossa fuga diz: “Eu consigo respirar!”
No entanto, em nosso imaginário, como fruto de uma construção narrativa e ideológica construída e patrocinada pela branquitude, pelo colonialismo e seus cúmplices, a fuga marron e quilombola para as florestas e serras, a iniciativa de livrar-se das correntes e do julgo colonial, e também a sabotagem do sistema colonial em seus mais diversos níveis, entendida como fuga física e moral, costuma ser lida como covardia, preguiça e/ou fruto de uma natureza animal indomável. No entanto, a fuga se mostrou uma estratégia magistral de artimanha e sagacidade únicas, que foi capaz, através da coragem e articulação de sujeitos negros, e de outros sujeitos também vitimados pelo colonialismo, de fundar verdadeiramente um mundo novo, uma nova mentalidade e um novo humano, numa confluência de confrontamentos, saberes, vivências, heranças, futuro e renascimentos, como expresso por Nego Bispo em seu pensamento e uma de suas ideias centrais, a confluência: “Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente”.2 (BISPO, 2023).
O quilombismo e a marronagem são movimentos fluídos e atemporais, nascidos há séculos e atravessados pelas mais diversas dinâmicas sociais e períodos históricos, e ainda assim legados de forma viva, múltipla e potente ao século XXI, com toda sua rica carga histórica e social, um verdadeiro tesouro pirata escondido à céu aberto. São a prova de que há uma riqueza dos povos amefricanos e ladinos que para além de protegida como patrimônio intocável e entendido como imutável, necessita ser procurada, revisitada, utilizada e desdobrada pelos seus herdeiros, para que a construção do novo siga corrente, ou seja, a fuga é a nossa experiência cultural coletiva que cria o tesouro e leva até ele. E mais, uma herança e um saber que assume outras formas associativas tanto no universo rural quanto urbano, tanto no universo físico quanto intelectual e espiritual, afinal, o aquilombar é uma realidade, uma fuga de vários caminhos, mas que demanda cuidados, para que não seja feita para territórios inimigos, para os domínios inimigos.
Com isso, a questão que nos confronta a decifrar o mapa que leva a este tesouro e o cria é até que ponto conseguimos entender se a fuga merece continuar a ser uma prática que nos sustenta e guia como forma de resistência, afastamento e oposição a uma ideia branca e provincial de mundo que nos mói e corrói vivos sem muito esforço? Até que ponto existe coragem suficiente para abdicar daquilo que corrói ao toque, sufoca ao inspirar, cega ao olhar e embranquece ao copiar?
Ils ne croisent que des génies qui n'exauceront pas leurs voeux Et je ne convoite pas leurs femmes, et je n'adore pas leur Dieu. 3 Sofiane Zermani, “Des Malades”.
1. TOUAM BONA, Dénètem. Arte da fuga. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 18-27, dez. 2021.
2. SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.
3. Tradução livre: “Eles só encontram gênios que não realizam seus desejos. E eu não cobiço suas mulheres, nem adoro o seu Deus”.
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