Por Rafael Precioso
O turismo pode e deve ser acessível. Essa premissa, no entanto, depende de uma transformação profunda, que não se limita apenas às práticas adotadas pelas grandes empresas do setor, mas também exige um olhar crítico por parte de quem consome e acessa esses espaços. É imprescindível compreender que o fenômeno racial atravessa todas as relações sociais, econômicas e históricas, moldando as dinâmicas que vivemos e experienciamos, inclusive no turismo. Por isso, é urgente construir um turismo com consciência crítica, que promova uma educação libertadora, como já proposto por Freire (2021) em sua visão de pedagogia voltada para a conscientização e a transformação social.
Muitas vezes, a ideia de turismo sustentável é reduzida a ações relacionadas à conservação da natureza e à diminuição dos impactos ecológicos das atividades humanas. Essa abordagem, apesar de necessária, ainda é insuficiente se não considerarmos as dimensões raciais, econômicas e culturais que compõem os territórios visitados. Como afirmam Moore e Grove (2022), práticas de sustentabilidade muitas vezes ignoram as questões de justiça social, reforçando desigualdades estruturais já existentes.
Ao refletirmos sobre turismo, é fundamental reconhecer o impacto histórico das desigualdades no acesso a esses espaços. O turismo tradicionalmente favoreceu grupos com maior poder aquisitivo, criando barreiras para as populações racializadas e economicamente marginalizadas. Essas barreiras, como enfatiza Hall (2015), são frequentemente sustentadas por narrativas culturais que desvalorizam a diversidade e perpetuam uma visão eurocêntrica da história e da identidade cultural.
Nesse sentido, um turismo de consciência crítica propõe a revisão das narrativas e das práticas que perpetuam essas desigualdades. Isso inclui a valorização dos saberes ancestrais, das culturas indígenas e afrodescendentes e a problematização de discursos coloniais que ainda predominam em muitas atividades turísticas. Essa abordagem se alinha às propostas de Mignolo (2003), que destaca a necessidade de descolonizar o pensamento para incluir perspectivas subalternas nos discursos predominantes.
Além disso, é preciso destacar que o turismo acessível não é apenas uma questão de democratizar o consumo, mas de questionar os próprios modelos de produção e exploração dos territórios. Como argumenta Smith (2012), a descolonização envolve um compromisso ativo em valorizar as vozes e os conhecimentos das comunidades locais, em oposição à imposição de práticas e valores externos.
Um dos principais desafios para construir um turismo de inclusão e transformação está no engajamento coletivo. Empresas, guias e viajantes devem assumir a responsabilidade de repensar como as experiências turísticas podem ser mais justas e inclusivas. Isso envolve desde a criação de políticas mais acessíveis financeiramente até a promoção de roteiros que contemplem diferentes perspectivas históricas e culturais, como aponta Santos (2021) ao abordar a importância das epistemologias do sul na construção de práticas sociais transformadoras.
Por exemplo, uma prática essencial é a capacitação de guias locais que contemplem uma abordagem decolonial, trazendo à tona as histórias de resistência, resiliência e contribuição dos povos indígenas e afrodescendentes. Ao reconhecer essas narrativas, como defende Rodrigues (2019), estamos desconstruindo mitos e valorizando a diversidade como parte integral da experiência turística.
Outro ponto fundamental é a análise crítica das relações econômicas dentro do setor. Grandes empresas de turismo frequentemente monopolizam recursos e acesso, deixando pouco espaço para iniciativas locais e autônomas. Promover um turismo consciente implica fortalecer empreendimentos comunitários, cooperativas e negócios de pequeno porte que priorizem a sustentabilidade econômica das populações envolvidas, como discutido por Ullyot (2021).
Boas práticas de turismo não se fazem apenas com ações pontuais. É preciso construir uma abordagem que englobe as complexidades do mundo contemporâneo, reconhecendo que a consciência ambiental deve caminhar lado a lado com a justiça social e racial. Essas dimensões são inseparáveis e demandam esforços conjuntos para criar experiências verdadeiramente transformadoras e inclusivas.
Os viajantes também têm um papel essencial nesse processo. Adotar uma postura crítica e reflexiva sobre os lugares que visitam, buscando entender suas histórias, culturas e desafios, é um passo importante para desconstruir visões estereotipadas. A experiência turística deve ser vista como uma oportunidade de aprendizado mútuo e de fortalecimento das relações humanas, conforme enfatiza Fanon (1968) ao abordar as implicações da desumanização nos contextos de colonização e resistência.
As empresas, por sua vez, precisam repensar suas práticas e discursos. Investir em roteiros que contemplem a diversidade cultural e oferecer treinamentos para guias e equipes com foco em inclusão e empatia são ações concretas que podem contribuir para transformar o setor. Além disso, é crucial que as empresas adotem políticas de precificação mais justas, garantindo que o turismo seja acessível para diferentes grupos sociais.
A criação de roteiros que promovam a educação libertadora é outro aspecto essencial. Visitar espaços com histórias marcantes e criar atividades interativas que estimulem o pensamento crítico são formas de engajar os participantes de forma ativa. Ao incluir dinâmicas que abordem questões como desigualdade, resistência e ancestralidade, o turismo pode se tornar um instrumento de transformação social.
Em última análise, o turismo consciente é um convite para reimaginar nossa relação com os territórios e com as pessoas. É um chamado para nos tornarmos não apenas viajantes, mas agentes de mudança, que utilizam as experiências de viagem para ampliar suas perspectivas e contribuir para um mundo mais justo e inclusivo.
Portanto, repensar o turismo exige ampliar nossa percepção para além do lazer e do consumo. É necessário encarar essa atividade como um meio poderoso de educação transformadora, que desafie desigualdades, valorize a diversidade e ofereça experiências que empoderem tanto quem viaja quanto quem é anfitrião. Somente assim, com a inclusão de práticas que unam consciência ambiental, social e histórica, será possível construir um turismo verdadeiramente inclusivo, acessível e transformador.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2015.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do sul: movimentos sociais e o fim das metáforas modernas. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2021.
RODRIGUES, Cláudia. Memória e resistência: narrativas negras sobre turismo e patrimônio cultural. In: SILVA, E.; SANTOS, M. (Org.). Perspectivas críticas no turismo cultural. Salvador: EDUFBA, 2019.
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